quinta-feira, 17 de março de 2011

Natureza Íntima

Ao filósofo Farias Brito

Cansada de observar-se na corrente
Que os acontecimentos refletia,
Reconcentrando-se em si mesma, um dia,
A Natureza olhou-se interiormente!

Baldada introspecção! Noumenalmente
o que Ela, em realidade, ainda sentia
Era a mesma imortal monotonia
De sua face externa indiferente!

E a Natureza disse com desgosto:
"Terei somente, porventura, rosto?!
"Serei apenas mera crusta espessa?!

"Pois é possível que Eu, causa do Mundo,
"Quando mais em mim mesma me aprofundo
"Menos interiormente me conheça?!"

Augusto dos Anjos


O filósofo Farias Brito em 1905:

Nietzsche, verdade e metáfora


Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral
Friedrich Nietzsche, 1873.

§ 1

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. — Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o tomam tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante desde mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo com um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.
É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano — mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter.
O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice, aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das-costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade. Eles estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e vê “formas”, sua sensação não conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como que dedilhar um teclado às costas das coisas. Por isso o homem, à noite, através da vida, deixa que o sonho lhe minta, sem que seu sentimento moral jamais tentasse impedi-lo; no entanto, deve haver homens que pela força de vontade deixaram o hábito de roncar. O que sabe propriamente o homem de si mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente, como se estivesse em uma vitrina iluminada? Não lhe cala a natureza quase tudo, mesmo sobre seu corpo, para mantê-lo à parte das circunvoluções dos intestinos, do fluxo rápido das correntes sangüíneas, das intrincadas vibrações das fibras, exilado e trancado em uma consciência orgulhosa, charlatã! Ela atirou fora a chave: e ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre. De onde neste mundo viria, nessa constelação, o impulso à verdade!
Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a representação: mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos) desapareça de seu mundo. Esse tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto é, descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso usa as designações válidas, as palavras, para fazer aparecer o não-efetivo como efetivo; ele diz, por exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seria precisamente “pobre” a designação correta. Ele faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluíra de si. Os homens, nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as conseqüências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem conseqüências ele é indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil. E, além disso: o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do senso da verdade; as designações e as coisas se recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades?
Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma “verdade” no grau acima designado. Se ele não quiser contentar-se com a verdade na forma da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é um resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gênese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas designações, como pediríamos, no entanto, dizer: a pedra é dura: como se para nós esse “dura” fosse conhecido ainda de outro modo, e não somente como uma estimulação inteiramente subjetiva! Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias! A que distância voamos além do cânone da certeza! Falamos de uma Schlange (cobra): a designação não se refere a nada mais do que o enrodilhar-se e portanto poderia também caber ao verme. Que delimitações arbitrárias, que preferências unilaterais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! As diferentes línguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências) é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas. Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. Pode-se pensar em um homem, que seja totalmente surdo e nunca tenha tido uma sensação do som e da música: do mesmo modo que este, porventura, vê com espanto as figuras sonoras de Chladini (físico alemão, estudioso de teoria do som) desenhadas na areia, encontra suas causas na vibração das cordas e jurará agora que há de saber o que os homens denominam o “som”, assim também acontece a todos nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. Assim como o som convertido em figura na areia, assim se comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez como estímulo nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. Em todo caso, portanto, não é logicamente que ocorre a gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com o qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, em todo caso não da essência das coisas.
Pensemos ainda, em particular, na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito quando justamente não deve servir, eventualmente como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única, à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse “folha”, eventualmente uma folha primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno com cópia fiel da forma primordial. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente? — perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa da honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada de uma qualidade essencial, que se chamasse “a honestidade”, mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual e designamos, agora, como ações honestas; por fim, formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome: “a honestidade”. A desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto também não conhece espécie, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição entre indivíduo e espécie é antropológica e não provém da essência das coisas, mesmo se não ousamos dizer que não lhe corresponde: isto seria, com efeito, uma afirmação dogmática e como tal tão indemonstrável quanto seu contrário.
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo, sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.
Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à verdade: pois até agora só ouvimos falar da obrigação que a sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de usar metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da obrigação de mentir segundo uma convenção, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos. Ora, o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e segundo hábitos seculares — e justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega ao sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como “vermelha”, outra como “fria”, uma terceira como “muda”, desperta uma emoção que se refere moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em quem ninguém confia, que todos excluem, o homem demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de confiança e útil na verdade. Coloca agora seu agir como ser “racional” sob a regência das abstrações; não suporta mais se arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições, universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema, portanto de dissolver uma imagem em conceito. Ou seja, no reino daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter êxito sob o efeito das primeiras impressões intuitivas; edificar uma ordenação piramidal por castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das primeiras impressões como o mais sólido, o mais universal, o mais conhecido, o mais humano e, por isso, como o regulador e imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, que são da própria matemática. Quem é bafejado por essa frieza dificilmente acreditará que até mesmo o conceito, ósseo e octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, é somente o resíduo de uma metáfora, e que a ilusão da transposição artificial de um estímulo nervoso em imagens, se não é a mãe, é pelo menos a avó de todo e qualquer conceito. No interior desse jogo de dados do conceito, porém, chama-se “verdade” usar cada dado assim como ele é designado, contar exatamente seus pontos, formar rubricas corretas e nunca pecar contra a ordenação de castas e a seqüência das classes hierárquicas. Assim como os romanos e etruscos retalhavam o céu com rígidas linhas matemáticas e em um espaço assim delimitado confinavam um deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual matematicamente repartido e entende agora por exigência de verdade que cada deus conceitual seja procurado somente em sua esfera. Pode-se muito bem, aqui, admirar o homem como um poderoso gênio construtivo, que consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre a água corrente um domo conceitual infinitamente complicado: — sem dúvida, para encontrar apoio sobre tais fundamentos, tem de ser uma construção como que de fios de aranha, tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firme a ponto de não ser espedaçada pelo sopro de cada vento. Como gênio construtivo o homem se eleva, nessa medida, muito acima da abelha: esta constrói com cera, que recolhe da natureza, ele com a matéria muito mais tênue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de si mesmo. Ele é, aqui, muito admirável — mas só que não por seu impulso à verdade, ao conhecimento puro das coisas. Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar nesse procurar e encontrar: e é assim que se passa com o procurar e encontrar a “verdade” no interior do distrito da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: “Vejam, um animal mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente antropomórfica e não contém um único ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, no fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta por um entendimento do mundo como uma coisa à semelhança do homem e em função de sua sorte e sofrimento, assim um tal pesquisador observa o mundo inteiro como ligado ao homem, como repercussão infinitamente refratada de um som primordial, do homem. Seu procedimento consiste em tomar o homem por medida de todas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente, como objetos puros diante de si. Esquece, pois, as metáforas intuitivas de origem, como metáforas, e as toma pelas coisas mesmas.
(...)

§ 2

(...)
Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso fundamental do homem, que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem mesmo não seria levado em conta, quando se constrói para ele, a partir de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um novo território para sua atuação em um outro leito de rio, e o encontra no mito e, em geral, na arte. Constantemente, ele embaralha as rubricas e compartimentos dos conceitos, propondo novas transposições, metáforas, metonímias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o homem acordado uma forma tão cromaticamente irregular, inconseqüentemente incoerente, estimulante e eternamente nova como a do mundo do sonho. É verdade que o homem acordado somente pela teia rígida e regular do conceito tem certeza clara de estar acordado, e justamente por isso chega às vezes à crença de que sonha, se alguma vez aquela teia conceitual é rasgada pela arte. Pascal tem razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o mesmo sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como com as coisas que vemos a cada dia: “se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar cada noite, doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é um trabalhador manual”. O dia de vigília de um povo de emoções míticas, por exemplo, os gregos antigos, é de fato, pelo milagre constantemente atuante, que mito aceita, mais semelhante ao sonho do que o dia do pensador que chegou à sobriedade da ciência. Se uma vez cada árvore pode falar como uma ninfa ou sob o invólucro de um touro um deus pode seqüestrar donzelas, se mesmo a deusa Atena pode subitamente se vista quando, com sua bela parelha, no séquito de Pisístrato, passa pelas praças de Atenas — e nisso acredita o ateniense honrado —, então a cada instante, como no sonho, tudo é possível, e a natureza inteira esvoaça em torno do homem como se fosse apenas uma mascarada dos deuses, para os quais seria apenas uma diversão enganar os homens em todas as formas.
O próprio homem, porém, tem uma propensão invencível a deixar-se enganar e fica como que enfeitiçado de felicidade quando a rapsodo lhe narra contos épicos como verdadeiros, ou o ator, no teatro, representa o rei ainda mais regiamente do que o mostra a efetividade. O intelecto, esse mestre do disfarce, está livre e dispensado de seu serviço de escravo, enquanto pode enganar sem causar dano, e celebra então suas Saturnais. Nunca ele é mais exuberante, mais rico, mais orgulhoso, mais hábil e mais temerário: com prazer criador ele entrecruza as metáforas e desloca as pedras-limites das abstrações, de tal modo que, por exemplo, designa o rio como caminho em movimento que transporta o homem para onde ele, do contrário, teria de ir a pé. Agora ele afastou de si o estigma de servilidade: antes empenhado em atribulada ocupação de mostrar a um pobre indivíduo, cobiçoso de existência, o caminho e os instrumentos e, como um servo, roubando e saqueando para seu senhor, ele agora se tornou senhor e pode limpar de seu rosto a expressão de indigência. O que quer que ele faça agora, tudo traz em si, em comparação com sua atividade anterior, o disfarce, assim como a anterior trazia em si a distorção. Ele copia a vida humana, mas a toma como uma boa coisa e parece dar-se por bem satisfeito com ela. Aquele descomunal arcabouço e travejamento dos conceitos, ao qual o homem indigente se agarra, salvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre somente um andaime e um joguete para seus mais audazes artifícios: e quando ele o desmantela, entrecruza, recompõe ironicamente, emparelhando o mais alheio e separando o mais próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de salvação da indigência e que agora não é guiado por conceitos, mas por intuições. Dessas intuições, nenhum caminho regular leva à terra dos esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas não foi feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos de conceitos, para pelo menos através da demolição e escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder criadoramente à impressão de poderosa intuição presente.
Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro escarnecendo da abstração; este último é tão irracional quanto o primeiro é inartístico. Ambos desejam ter domínio sobre a vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudência, regularidade, enfrentar as principais necessidades, aquele, como “herói eufórico”, não vendo aquelas necessidades e tomando somente a vida disfarçada em aparência e em beleza como real. Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz suas armas mais poderosamente e mais virtuosamente do que seu reverso, pode configurar-se, em caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigência, aquele esplendor das intuições metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão acompanham todas as manifestações de tal vida. Nem a casa, nem o andar, nem a indumentária, nem o cântaro de barro denunciam que a necessidade os inventou: parece como se em todos eles fosse enunciada uma sublime felicidade e uma olímpica ausência de nuvens e como que um jogo com a seriedade. Enquanto o homem guiado por conceitos e abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade, sem conquistar das abstrações uma felicidade para si, enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo, já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida, ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo sofre com mais freqüência, pois não sabe aprender da experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.

Friedrich Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, 1873.
In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural.

Platão, física e filosofia


[Fédon 96a – 100a]:

(...) A esta altura fez Sócrates uma longa pausa, absorto em alguma reflexão. Depois disse:

– Não é coisa sem importância, Cebes, o que procuras. A causa da geração e da corrupção de todas as coisas, tal é a questão que devemos examinar com cuidado. Se o desejares, poderei relatar-te detalhadamente as minhas experiências a esse respeito. E se vires que uma ou outra coisa do que eu disser é útil aproveita-a para reforçar tua tese.

– Sim – disse Cebes – é justamente o que eu quero.

– Escuta, então, o que vou contar: em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a que dão o nome de “exame da natureza”; parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam por sua vez a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira como tudo isso se corrompe, e, também, os fenômenos que se passam na abóbada celeste e na terra. E acabei por me convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptidão notável! Vou contar-te uma ocorrência que bem esclarece minha situação naquele tempo. Havia coisas acerca das quais eu antes possuía um conhecimento certo, ao menos na minha opinião, e na dos outros. Pois bem, essa espécie de estudo chegou a produzir em mim uma tal cegueira que desaprendi até aquelas coisas que antes eu imaginava saber, como, por exemplo, o conhecimento que eu julgava ter das causas que determinam o crescimento do homem! Outrora eu acreditava, como é claro para todos, que isso acontece em virtude do comer e do beber: adicionando, pelos alimentos, carne a carne e ossos aos ossos, e em geral substância semelhante a substância semelhante, acontece que o volume, antes pequeno, aumenta, e assim, o homem pequeno se torna grande. Desse modo pensava eu naquela época. Não achas tu que isso era razoável?

– Pelo que me parece, sim – respondeu Cebes.

– Mas repara no seguinte: naquele tempo, eu também achava razoável pensar que quando um homem grande é visto ao lado dum pequeno, ele é de uma cabeça maior do que o pequeno, e, da mesma forma, um cavalo é maior do que outro. E o que é mais evidente: o número “dez” me parecia maior do que o número “oito”, precisamente por causa do acréscimo de “dois”, e o tamanho de dois côvados me parecia ser maior do que o de um côvado por este ser a metade daquele.

– E agora – perguntou Cebes – qual é a tua opinião a esse respeito?

– Por Zeus, atualmente estou muito longe de saber a causa de qualquer dessas coisas! Não sei resolver nem sequer se quando se adiciona uma unidade a outra, a unidade à qual foi acrescentada a primeira torna-se duas, ou se é a acrescentada e a outra que assim se tornam duas pelo ato de adição. Fico admirado! Quando as duas unidades estavam separadas uma da outra, cada uma era uma, e não havia dois; logo, porém, que se aproximaram uma da outra, esse encontro tornou-se a causa da formação do dois. Também não entendo por que motivo, quando alguém divide uma unidade, esse ato de divisão faz com esta coisa que era uma se transforme pela separação em duas! Essa coisa que produz duas unidades é contrária à outra: antes, acrescentou-se uma coisa a outra – agora, afasta-se e separa-se uma de outra. Nem sei por que um é um! Enfim, e para dizer tudo, não sei absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece ou existe, segundo este procedimento metodológico. Escolhi então outro método, pois, de qualquer modo, este não me serve. Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou produzir qualquer ação. E pareceu-me ainda que a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e mais perfeito, porque desde que ele tenha encontrado isso, necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência.

Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxágoras o explicador da causa, inteligível para mim, de tudo que existe. Esperava que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra é plana ou redonda, e, depois de o ter dito, que à explicação acrescentasse a causa e a necessidade desse fato, mostrando-me ainda assim como é ela a melhor. Esperava também que ele dizendo-me que a terra se encontra no centro do universo, ajuntasse que, se assim é, é porque é melhor para ela estar no centro. Se me explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer desejaria tomar conhecimento de outra espécie de causas. Naturalmente, a propósito do sol eu estava pronto também a receber a mesma espécie de explicação, e da mesma forma para a lua e os outros astros, assim como também a respeito de suas velocidades relativas como de suas revoluções e de outros movimentos que lhes são próprios. Nunca supus que depois de ele haver dito que o Espírito [Nous] os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa além dessa que é a melhor e que é a que serve a cada uma em particular assim como ao conjunto.

Grandes eram as minhas esperanças! Pus-me logo a ler, com muita atenção e entusiasmo os seus livros. Lia o mais depressa que podia a fim de conhecer o que era o melhor e o pior. Mas, meu grande amigo, bem depressa essa maravilhosa esperança se afastava de mim! À medida que avançava e ia estudando mais e mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água, em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, e os tendões contraem e distendem os membros, e os músculos circundam os ossos com as carentes, e a pele a tudo envolve! Articulando-se os ossos em suas articulações, e estendendo-se e contraindo-se, sou capaz de flexionar os meus membros, e por esse motivo é que estou sentado aqui, com os membros dobrados. Tal homem diria coisas mais ou menos semelhantes a propósito de nossa conversa, e assim é que consideraria como causas dela a voz, o ar, o ouvido e muitas outras coisas – mas, em realidade, jamais diria quais são as verdadeiras causas disso tudo: estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me à morte, e por isso pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punição por eles decretada. Pelo Cão. Estou convencido de que estes tendões e estes ossos já poderiam há muito tempo se encontrar perto de Mégara ou entre os Beócios, para onde os teria levado uma certa concepção do melhor, se não me tivesse parecido mais justo e mais belo preferir à fuga e à evasão a aceitação, devida à Cidade, da pena que ela me prescreveu!

Dar o nome de causas a tais coisas seria ridículo. Que se diga que sem ossos, sem músculos e outras coisas eu não poderia fazer o que me parece, isso é certo. Mas dizer que é por causa disso que realizo as minhas ações e não pela escolha que faço do melhor e com inteligência – essa é uma afirmação absurda. Isso importaria, nada mais nada menos, em não distinguir duas coisas bem distintas, e em não ver que uma coisa é a verdadeira causa e outra aquilo sem o que a causa nunca seria causa. Todavia, é a isso que aqueles que erram nas trevas, segundo me parece, dão o nome de causa, usando impropriamente o termo. O resultado é que um deles, tendo envolvido a terra num turbilhão, pretende que seja o céu o que a mantém em equilíbrio, ao passo que para outro ela não passa duma espécie de gamela, à qual o ar serve de base e de suporte. Mas quanto à força, que a dispôs para que essa fosse a melhor posição, essa força, ninguém a procura; e nem pensam que ela deva ser uma potência divina. Acreditam, ao contrário, haver descoberto um Atlas mais forte, mais imortal e mais garantidor da existência do universo do que esse espírito; recusam-se a aceitar que efetivamente o bom e o conveniente formem e conservem todas as coisas. Ardentemente desejaria eu encontrar alguém que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi possível, porém, adquirir esse conhecimento então, pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias, estimado Cebes, que descrevesse a segunda excursão que realizei em busca dessa causalidade?

– É impossível que alguém o deseje mais do que eu – respondeu Ceres.

– Então – prosseguiu Sócrates – minha esperança de chegar a conhecer os seres começava a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e procurar nelas a verdade das coisas. É possível, todavia, que esta comparação não seja perfeitamente exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a observação ideal dos objetos – que é uma observação por imagens – seja melhor do que aquela que deriva de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro. Vou, porém, explicar com mais clareza o que estou a dizer, pois me parece que não o compreendeste bem.

[Adaptado de: Platão. Diálogos. Tradução: Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1972.]

Kant: O que é esclarecimento?


Immanuel Kant (1724-1804)
Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (1783)

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.

A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza há muito os libertou de uma direção estranha, continuem no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc, então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemoriza-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro.

É difícil portanto para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobre o mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura.

Que porém um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

Para este esclarecimento porém nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento? Qual não o impede, e até mesmo o favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento entre os homens. O uso privado da razão pode porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento. Entendo contudo sob o nome de uso público e sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário um certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até à sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse por-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros do serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas ideias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois naquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se serve. Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja contraditório com a religião interior. Pois se acreditasse encontrar esta contradição não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos.

Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com um certo credo invariável, a fim de por este modo exercer uma incessante supertutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Isso é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor, por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se franquearia a qualquer cidadãos, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento dos que preferissem manter-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente proibido unificar-se um uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua. Quando cuida de que toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si. Causa mesmo dano a sua majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Caesar non est supra grammaticos, mas também, e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos.

Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida”?, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento”. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento ou o século de Frederico.

Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente esclarecido e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Sob seu governo os sacerdotes dignos de respeito podem, sem prejuízo de seu dever funcional, expor livre e publicamente, na qualidade de súditos, ao mundo, para que os examinasse, seus juízos e opiniões num ou noutro ponto discordantes do credo admitido. Com mais forte razão isso se dá com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito de liberdade espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo de inquietação. Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quanto intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.

Acentuei preferencialmente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento, a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não tem nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mundo suas ideias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existente. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos.

Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido, não tem medo de sombras, e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera esta marcha em conjunto, quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e no entanto estabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa. Se portanto a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento livre, este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade.

[Adaptado de: Immanuel Kant. Textos Seletos. Tradução de Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985]

domingo, 13 de março de 2011

Mário de Andrade e Platão


O Losango Cáqui, 1924

XXXIII
"Prazeres e dores prendem a alma no corpo como um prego. Tornam-na corporal ... Consequentemente é impossível pra ela chegar pura nos Infernos."
Platão

Meu gozo profundo ante a manhã Sol
a vida carnaval...
Amigos
Amores
Risadas
Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos
de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarros
Me sinto a Assunção, de Murillo!

Já estou livre da dor...
Mas todo vibro da alegria de viver.

Eis porque minha alma inda é impura.

XXXIII bis *
PLATÃO

Platão! por te seguir como eu quisera
Da alegria e da dor me libertando
Ser puro, igual aos deuses que a Quimera
Andou além da vida arquitetando!

Mas como não gozar alegre quando
Brilha esta alva manhã de primavera
- Mulher sensual que junto a mim passando
Meu desejo de gozos exaspera!

A vida é bela! Inúteis as teorias!
Mil vezes a nudeza em que resplendo
À clâmide da ciência, austera e calma!

E caminho entre aromas e harmonias
Amaldiçoando os sábios, bendizendo
A divina impureza de minha alma.


* Publicado na Klaxon o poema anterior causou hilariedade. Era natural. Por caçoada vesti minhas sensações e ideias com este soneto.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

(h)ai-(k)ai

você não quer
e vem se fazer
de querida

assim fere
você
a minha ferida.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Fortuna e Tragédia, na serra ou em todo lugar


Nicolau Maquiavel – O Príncipe (1532)
Capítulo XXV

DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS
E DE QUE MODO SE LHE DEVA RESISTIR

QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT
ET QUOMODO ILLI SIT OCCURREN DUM

Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião.

Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destróem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso. Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu ímpeto em direção ao ponto onde ela sabe que não foram construídos diques e anteparos para contê-la. E, se considerardes a Itália, que é a sede destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez, ou não teria ocorrido.

Penso que isto seja suficiente quanto ao que tinha a dizer acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral. Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás, isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em choque com o momento que atravessa.

Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência, o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo. Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente, um alcança o seu fim e o outro não.

Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso, quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria.

O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e encontrou tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito. Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo ainda vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam descontentes; o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França ainda discutia tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto, deu início pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com que ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de outra parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei em campanha e desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos, julgou não poder negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma manifesta. Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que jamais outro pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois se ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos os planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro Papa teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas com feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou experimentar o contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em que se tornasse necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína, pois jamais ele teria desviado daquele modo de proceder a que a natureza o inclinava.

Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância. Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais afoitos e com maior audácia a dominam.

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000052.pdf
[adaptado]

veja notícia associada ao tema:
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2011/01/26/crea-diz-que-medidas-simples-poderiam-ter-evitado-mortes-na-regiao-serrana-923609601.asp

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

filosofia na pista


‎...e se hoje acontece alguém ser louvado, por viver 'sabiamente' ou 'como um filósofo', isto quer dizer apenas que vive 'prudente e afastado'. Sabedoria: isto parece ser uma espécie de fuga para a plebe, um meio e um artifício para sair bem de um jogo ruim; mas o verdadeiro filósofo ... vive de modo pouco filosófico e pouco sábio, sobretudo bem pouco prudente, e sente o fardo e a obrigação das mil tentativas e tentações da vida - ele arrisca a si próprio constantemente, jogando o jogo ruim...

[nietzsche, além de bem e mal, 205]

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

liberdade, convicção, experiência


O espírito livre é alguém dedicado ao conhecimento, que desdenha a veneração das massas e atravessa o mundo de forma tão silenciosa quanto dele sai. Sendo 'inatual', o espírito livre não tem amarras com a 'opinião pública'. Seu oposto imediato, o homem de convicções, é aquele que crê estar em posse de verdades definitivas e, por isso mesmo, tem por postulado não poder ser refutado. O espírito livre, ao contrário, nunca fixa opiniões em convicções: ele impede essa fixação por constantes variações e só terá ao seu dispor probabilidades exatamente mensuradas. Assim descrito, o espírito livre é, antes de tudo, um experimentador. Nietzsche o opõe ao espírito servo. As cadeias as mais fortes que o espírito deve romper para libertar-se são as cadeias dos deveres, quer dizer, o respeito aos valores antigos e venerados. O espírito livre vai designando, assim, uma vontade de autonomia na determinação de si mesmo e de seus próprios valores, uma 'vontade de vontade livre'. Agora o espírito livre torna-se um experimentador curioso em face dos frutos proibidos: ele se interrogará então se não podemos inverter todos os valores; se o bem não seria o mal; se Deus não seria uma invenção; se não pode ocorrer que tudo seja falso. Sua liberdade de espírito deverá abrir-lhe a via para maneiras de pensar múltiplas e opostas, o que lhe dará o privilégio de viver a título de experiência.

[Carlos A. R. de Moura. Nietzsche: civilização e cultura. SP: Martins Fontes, 2005.]

domingo, 21 de novembro de 2010

eironeia:

ignorabimus?

heraclitea


cada poeta é um barco onde o que lira, arco.
o verbo dá o bote além do boato.
duas vezes no mesmo no rio nunca se navega:
na crista da onda mais alta harmonia enxerga.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

afeto alegria I


com você
amor
tanta luz

afeto alegria II


quanta luz
com você
amor

sábado, 16 de janeiro de 2010

teatro?

(...) pela primeira vez me proporcionavam ensejo de prestar um serviço, ainda que insignificante, à classe teatral, da qual me confesso um dos grandes devedores, porque lhe devo um dos intervalos mais agradáveis da vida: o que tenho passado nos teatros. Não posso fazer o cálculo, teria mesmo acanhamento de o fazer; somadas, porém, todas as horas que tenho vivido na platéia ou nos camarotes, sem contar os minutos dos bastidores, minha carreira de espectador há de preencher talvez o espaço de um ano, o mesmo tempo que tenho passado no mar, e, tanto um como outro, tenho-os como dos mais bem empregados da vida.

Joaquim Nabuco apud PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Edusp, 1999.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

acorda, amor

acordar lendo jornal
ou poesia?

a dançarina marcharia
a soldadesca desvaria

pra acordar:
ler jornal
ou poesia?

Teatro e Oficina: Perdiz

como anda o Teatro Oficina do Perdiz?

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/07/27/diversaoearte,i=129872/OFICINA+TEATRO+PERDIZ+PADECE+SEM+ESPETACULO+E+ESPERANCA+DE+VER+ERGUIDA+A+NOVA+ESTRUTURA.shtml

segue o texto da matéria:

***
SHOW DE BANZÉ »
Oficina-teatro Perdiz padece sem espetáculo e esperança de ver erguida a nova estrutura

Sérgio Maggio
Publicação: 27/07/2009 08:36 Atualização: 27/07/2009 10:16


José Perdiz enche o vira-lata Banzé de Afagos diante da Oficina-Teatro Perdiz: o sonho acabou
O semblante de tristeza de José Perdiz se desfaz toda vez que o novo astro da oficina-teatro entra em cena. Ali, ele esquece a amargura de ver o espaço cultural reduzido ao vazio. Basta o cachorro Banzé rodopiar equilibrando-se em duas patinhas para o torneiro mecânico e mecenas dos sem-palco abrir o sorrisão. O vira-lata tem sido um alento na vida deste senhor de 77 anos, que há 20 resolveu encampar a ideia maluca de fazer um espetáculo em meio ao ferro-velho.

- De noite, quando olho para a arquibancada abandonada, lembro de tanta vida que se levantou neste chão. Nem parece que foi real. Tudo foi um sonho que se foi, lamenta Perdiz.

Ao redor da declaração de Perdiz, o cineasta Piu Gomes arma o set de filmagem para dar continuidade ao curta José(s), que há dois anos reuniu ali José Celso Martinez Correa e José Perdiz, os dois donos de teatros-oficinas, numa filmagem histórica.

- É um curta que está virando um longa. A sensação que tenho é de filmagem sobre o nada. Há dois anos se costura um acordo para erguer um novo espaço e absolutamente nada acontece. Agora, a gente chega e tem essa sensação de opressão, desabafa Piu Gomes, referindo-se à marquise de construção vizinha, que avançou três metros sobre a oficina.

- O teatro aqui acabou. Sinto que estou em fim de linha e não vou deixar aos jovens artistas da cidade um espaço para a realização de peças. Isso me deixa muito amargurado, completa Perdiz, há 40 anos ocupando o terreno considerado de posse pública.

O nó de marinheiro que envolve a questão da Oficina do Perdiz, um patrimônio imaterial da cultura do DF, parecia desatado com acordo envolvendo a Secretaria de Cultura do GDF, a imobiliária do prédio vizinho e o proprietário José Perdiz para construir o novo espaço cultural em terreno na 710 Norte (bloco E, entre os lotes 32 e 54). É um espaço de 5,70m de largura onde será erguida a oficina no térreo, o teatro no subsolo e a moradia no primeiro andar. Na sexta-feira, Piu Gomes levou Perdiz para o local a fim de fazer mais uma tomada.

- Outro dia, disseram: 'Vamos começar a obra nesta semana'. Já se passaram dois meses. É um espaço pequeno para o sonho que eu tinha, de sala de música e biblioteca. Mesmo assim, gostaria muito de ver isso de pé ainda em vida, observa José Perdiz, que olha abismado um grafite recente na parede do vizinho.

No desenho, há um monge e um bobo da corte. Perdiz se perde no mundo de cores e imagens erguido pelo spray.

- Velho, ele (o monge) parece até comigo, de tão triste que está.

Visivelmente angustiado, José Perdiz recorre à metáfora para traduzir como se sente diante desse tempo estancado: a de um pugilista de 2m de altura que pega o mecânico-mecenas pela gola da camisa e soca o seu corpo sem piedade.

- Não tenho força pra escapulir dele.

Quando parece desistir de tudo, aí vem Banzé balançando o rabo. Perdiz se desmancha e enche seu cachorro de carinho.

- Banzé é o novo Zé deste filme. Acho que ele representa bem tudo isso. O homem que acolhe o cachorro vira-lata assim como abrigou o artista sem dinheiro para fazer seu teatro, compara Piu Gomes.

Memória
Sonho e pesadelo

Há duas fases na história a ser contada sobre a Oficina do Perdiz. Uma de dor e sofrimento, outra cheia de vida e de arte. São narrativas que estavam isoladas e só se encontraram em 1989, quando o diretor Mangueira Diniz teve a fagulha de encenar Esperando Godot em meio aos tornos e fresas de José Perdiz. A primeira começa em 1965, quando o trabalhador braçal de aspirações comunistas chega à nova capital do Brasil. Cheio de sonhos e ideologias, ele acaba por empenhar a vida junto com o crescimento da cidade. É aí que adquire, sem saber, terreno em área que era irregular e constrói em 1969 uma oficina na 708 Norte. Começa então um tempo de luta para pôr em ordem à posse da terra, que sucessivamente será ameaçada de despejo.

Talvez, a oficina estivesse há muito tempo no chão se não fosse o começo da segunda parte dessa história. Quando o teatro pisou ali, em 1989, subiu uma energia que contagiou a cidade. Esperando Godot provocou um burburinho em Brasília e Bella ciao, de 1991, virou alvoroço. Deu um ar de urbanidade à capital: uma peça encenada numa oficina mecânica, na qual o elenco cozinhava, comia e se deleitava ocupando todos os espaços. Até Perdiz estava em cena como um nono italiano.

A partir daí, a oficina mecânica de José Perdiz foi batizada como um templo teatral. Mais: um espaço que subverteu a ordem matemática dos criadores de Brasília, onde diversão e arte tinham setor certo para ocorrer. Perdiz abriu as portas para todos aqueles que queriam fazer teatro, tendo ou não dinheiro para pagar ao menos a conta de luz gasta com as sessões teatrais. Não à toa, todas as tentativas posteriores de derrubada da oficina-teatro foram defendidas por cordão humano formado por artistas, que se tornaram guardiões. Fizeram vigília quando os tratores chegaram bem perto.

Até o acordo final para desocupar o espaço em prol da construção de outro, legal e com escritura, José Perdiz experimentou essa gangorra de sentimentos. Do sonho ao pesadelo, do teatro à insensibilidade dos burocratas, da esperança à sensação do fim dos dias.

Obra emperrada

O secretário de Cultura, Silvestre Gorgulho, está preocupado com a situação no novo teatro oficina. Na quarta-feira passada, ele esteve com o procurador do Ministério Público Roberto Carlos Silva para tentar uma saída para atual impasse que emperra a obra.

- A Administração de Brasília não quer liberar a construção das arquibancadas para o teatro, alegando que a 710 Norte não é área destinada ao teatro, conta Silvestre.
De acordo com o secretário, os empresários da imobiliária estão a ponto de construir o terreno, o Derpha fez o projeto, mas a Administração empacou.

- Enquanto isso, o prédio vizinho da atual oficina está ficando pronto.

As 200 famílias vão se mudar e acabar por expulsar o Perdiz, prevê o secretário, que promete se mexer para evitar que Brasília perca a Oficina-Teatro Perdiz.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

bilhete ao filósofo


necessidade não de trabalhar para conseguir dinheiro
mas de conseguir dinheiro para trabalhar

Rogério Duarte. Tropicaos

sábado, 9 de janeiro de 2010

Rilke e os versos

Pois versos não são, como as pessoas imaginam, sentimentos (a esses, temos cedo demais) - são experiências. E por causa de um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer bichos, é preciso sentir como voam os pássaros, e saber com que gestos flores diminutas se abrem ao amanhecer. É preciso poder recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados, e despedidas que há muito sentíamos chegar - dias da infância, ainda não explicados, os pais que tínhamos de magoar quando nos davam alguma alegria e não a entendíamos (era uma alegria para outra pessoa), doenças de criança que começavam de modo tão singular, com tantas e tão profundas transformações, dias em quartos silenciosos e isolados, e manhãs no mar, o mar sobretudo, mares, noites de viagem rumorejando no alto e voando com todas as estrelas - e poder pensar em tudo isso ainda não é suficiente. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, nenhuma semelhante à outra, gritos de mulheres dando à luz, leves e alvas parturientes adormecidas que se tornavam a fechar. E também é preciso ter estado com moribundos, sentar-se junto aos mortos no quartinho com a janela aberta, e aqueles ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las, quando são muitas, e ter a grande paciência de esperar que retornem por si. Pois as lembranças em si ainda não o são. Só quando se tornarem sangue em nós, olhar e gesto, sem nome, não mais distinguíveis de nós mesmos, só então pode acontecer que numa hora muito rara brote do meio delas a primeira palavra de um poema.

Rainer Maria Rilke em "Os cadernos de Malte Laurids Brigge", tradução de Lya Luft, São Paulo, Ed. Novo Século, 2008, p. 18-19.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

novo ano?

ano novo onde é que eu vou?
vou ficar por aqui mesmo
andando ali, andando aqui
procurando...
um novo post para um novo ano
ano novo
feliz planeta novo
o sol é novo a cada dia
estou procurando
um novo post
para um novo ano
um novo posto
uma nova aposta
uma nova posta
estou procurando...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

de que rio na guerra?

o que segue é um relato/desabafo de um morador do Complexo do Alemão, que escreve e se inscreve no calor das balas que nem sempre são perdidas... para ler, compreender e transformar a realidade brasileira...



***
Gente,
Escrevo abaixo um novo desabafo. Está fresquinho...enquanto digito o coro está comendo aqui.
Caveirão invade, às 10h30, o Complexo do Alemão, mais precisamente a favela de Nova Brasília. Depois de uma avalanche de presságios na Imprensa de “referência” do Rio de Janeiro onde as notícias centrais eram sobre a fala do secretario de segurança pública Mariano Beltrame de que o Rio não é violento, a polícia para responder as “críticas” dos jornalões resolve fazer uma incursão no Complexo do Alemão às 10h30 da manhã. Uma multidão de gente na rua, crianças vindo e indo para as escolas, comércios locais cheios de clientes etc. Começou o surdunço, neste exato momento da minha casa ouço vários tiros, muitos tiros, a bala tá comendo... depois disso vem o que todos já sabem, ou seja, notícia de que uma bala “perdida” matou uma pessoa inocente e que o tiro saiu da arma supostos traficantes, além de toda uma legitimação da morte de uma monte de gente de um lado e de outro a sentença, o juízo e a cretinice. Qual o resultado prático de mais um operação “pacífica”? Qual o propósito disso?
O Complexo do Alemão estava em paz (um período razoável), porém uma paz ameaçada de pelos quatro cantos, uma paz estranha, mas para que paz se o estado é beligerante? O que me incomoda nesta história é que ela se repete com freqüência. É só os jornalões investirem na máxima: A cidade do Rio está um caos, violenta, por exemplo, que tudo recomeça, aliás, são eles que investem constantemente e fazem da violência uma forma de manter a “paz” e mais do que isso uma forma de aquecer a economia de seguros de automóveis, sistemas de segurança etc., e reduzir a vida a Shopping Center. Daí a necessidade dessa contradição. Sugiro vocês acompanharem o que os jornalões noticiaram hoje e noticiarão amanhã.
A desfaçatez e o torpor de todos os que legitimam tais ações me dá nojo.
Preciso externar minha cólera contra tudo e todos que acreditam que a favela é o problema por excelência da sociedade civilizada. Peço desculpas àqueles que, “inconscientemente”, fazem seus discursos movido pela paixão doentia de uma paz quase metafísica, por conseguinte de uma vida mais tranqüila e feliz amparado nos discursos midiáticos. Nos últimos dias tem-me batido uma extrema revolta devido aos discursos, diálogos, papos que estou envolvido direta ou indiretamente. Uma revolta que se justifica, a meu ver, pela insistência em que tais falas não cessam de justificar a violência (retida estritamente a arma de fogo), os assaltos que vivemos na cidade do Rio de Janeiro. A favela e os favelados são a causa dessa barbárie. Bom, pelo menos pensam e agem assim os cidadãos de classe média e todos aqueles que reproduzem o discurso oficial que a favela e adjacências são um perigo constante.
O tempo todo ouço dizer que onde eu moro é perigoso, que o percentual de assaltos, assassinatos e todo tipo de degeneração social é elevadíssimo. Isso é irritante e confesso que cheguei ao meu limite. Quem gosta de mim, por favor, me poupe de comentários do tipo que mencionei acima. Já não suporto ver e ouvir amigos próximos que cresceram comigo e conseguiram a custa de muito esforço “mudar de vida”. Hoje. boa parte desses amigos, pertencem a outra “classe” social e de lá com seus binóculos costumam olhar para a favela quando lhe sobram tempo lêem um bom jornal e ou assistem TV informando de maneira imparcial e com base em pesquisas fidedignas que a favela é um problema para a sociedade. Esses amigos vivem dizendo que não podem me dar carona em seus carros com medo de serem roubados. Esses amigos olham para a favela e dizem que é um lugar feio de gente feia, pobre sem educação.
Ontem comemoramos o dia da favela com um evento com inúmeras manifestações culturais como dança, capoeira, música, teatro, artesanato, audiovisual etc., tudo feito e realizado pela favela e favelados em parceria com a secretaria de cultura do estado (que contradição né. Ponto para a secretaria pois é a única que está enxergando a pluralidade do Complexo). Alguém soube desse evento? Alguém assistiu em alguma emissora de TV ou leu em algum jornal? Parece que a TV Brasil foi a única que esteve lá, quando lá é lá no mais alto do morro, no cume, no campo onde houve aquele estardalhaço na morte do Tim Lopes...

Grande abraço e muita paz,
***

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

futuro passado

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

amem

"Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação."

domingo, 2 de agosto de 2009

¿QUÉ LES QUEDA A LOS JÓVENES?

Mario Benedetti

¿Qué les queda por probar a los jóvenes en este mundo de paciencia y asco?
¿Sólo grafitti? ¿rock? ¿escepticismo?
También lês queda no decir amén
No dejar que les maten el amor
Recuperar el habla y la utopía
ser jóvenes sin prisa y con memoria
situarse en una historia que es la suya
no convertirse en viejos prematuros
¿qué les queda por probar a los jóvenes
en este mundo de rutina y ruina?
¿cocaína?¿cerveza?¿barras bravas?
Les queda respirar / abrir los ojos
Descubrir las raíces del horror
inventar paz así sea a ponchazos
entenderse con la naturaleza
y con la lluvia y los relámpagos
y con el sentimiento y con la muerte
esa loca de atar y desatar
¿qué les queda por probar a los jóvenes
en este mundo de consumo y humo?
¿vértigo? ¿asaltos? ¿discotecas?
También les queda discutir con dios
tanto si existe como si no existe
tender manos que ayudan / abrir puertas
entre el corazón propio y el ajeno
sobre todo les queda hacer futuro
a pesar de los ruines del pasado
y los sabios granujas del presente.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

ideia

idéia sem acento
idéia sem assento
ideia sem acento
ideia sem assento

quarta-feira, 20 de maio de 2009

si dios fuera una mujer

Mario Benedetti (1920-2009)

¿Y si Dios fuera una mujer?
Juan Gelman

¿y si dios fuera mujer?
pregunta juan sin inmutarse

vaya vaya si dios fuera mujer
es posible que agnósticos y ateos
no dijéramos no con la cabeza
y dijéramos sí con las entrañas

tal vez nos acercáramos a su divinades
nudez
para besar sus pies no de bronce
su pubis no de piedra
sus pechos no de mármol
sus labios no de yeso

si dios fuera mujer la abrazaríamos
para arrancarla de su lontananza
y no habría que jurar
hasta que la muerte nos separe
ya que sería inmortal por antonomasia
y en vez de transmitirnos sida o pánico
nos contagiaría su inmortalidad

si dios fuera mujer no se instalaría
lejana en el reino de los cielos
sino que nos aguardaría en el zaguán del
infierno
con sus brazos no cerrados
su rosa no de plástico
y su amor no de ángeles

ay dios mío dios mío
si hasta siempre y desde siempre
fueras una mujer
qué lindo escándalo sería
qué venturosa espléndida imposible
prodigiosa blasfemia

Se todo mundo sair de carro ninguém anda

http://www.youtube.com/watch?v=oQjX19ZPbDY

Doses crescentes de engarrafamento
Doses crescentes de mais engarrafamento
Doses crescentes de ainda mais engarrafamento
Doses crescentes de automóveis de engarrafamento
Doses crescentes de mais automóveis de engarrafamento
Doses crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Doses automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Doses mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Mais doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Ainda mais doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Ainda mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Automóveis ainda mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Mais automóveis ainda mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Ainda mais automóveis ainda mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais automóveis de engarrafamento
Ainda mais automóveis ainda mais doses ainda mais automóveis doses ainda mais automóveis crescentes de ainda mais doses automóveis de engarrafamento
Ad catastrophem

amor ambiente

O amor condicionado como o ar
Está ressecando minhas narinas
E o ar que respira o antigo coração

O sangue a correr nas velhas veias
Do oxigênio condicionado do amor
Engarrafado em doses crescentes
De carbono queimado na atmosfera

o amor respira o ar da atmosfera
condicionado como o ar está o amor
do oxigênio sufocado pela queima
do carbono vegetal e mineral da terra

as narinas ressecadas
e o antigo coração condicionados
sufocados nesta atmosfera
de abandono do ar
de queima do carbono

o coração fumaça
sufoca o amor do mundo
a indústria do coração fumaça
sufoca

quinta-feira, 7 de maio de 2009

viração



poema na rua
amigo me diz
vai
agora vai
beijo
a rua me beija

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

"As coisas que chamamos de amor"

"Cobiça e amor: que sentimentos diversos evocam essas duas palavras em nós! - e poderia, no entanto, ser o mesmo impulso que recebe dois nomes; uma vez difamado do ponto de vista dos que já possuem, nos quais ele alcançou alguma calma e que temem por sua 'posse'; a outra vez do ponto de vista dos insatisfeitos, sedentos, e por isso glorificado como 'bom'.

Nosso amor ao próximo - não é ele uma ânsia por nova propriedade? E igualmente o nosso amor ao saber, à verdade, e toda ânsia por novidades?

Pouco a pouco nos enfadamos do que é velho, do que possuímos seguramente, e voltamos a estender os braços; ainda a mais bela paisagem não estará certa do nosso amor, após passarmos três meses nela, e algum litoral longínquo despertará nossa cobiça: em geral, as posses são diminuídas pela posse. Nosso prazer conosco procura se manter transformando algo novo em nós mesmos - precisamente a isto chamamos possuir.

Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo.

(Pode-se também sofrer da demasia - também o desejo de jogar fora, de distribuir; pode ter o honrado nome de "amor".)

Quando vemos alguém sofrer, aproveitamos com gosto a oportunidade que nos é oferecida para tomar posse desse alguém; é o que faz o homem benfazejo e compassivo, que também chama de "amor" ao desejo de uma nova posse que nele é avivado, e que nela tem prazer semelhante ao de uma nova conquista iminente.

Mas é o amor sexual que se revela mais claramente como ânsia de propriedade: o amante quer a posse incondicional tanto sobre sua alma como sobre seu corpo, quer ser amado unicamente, habitando e dominando a outra alma como algo supremo e absolutamente desejável.

Se considerarmos que isso não é outra coisa senão excluir todo o mundo de um precioso bem, de uma felicidade e fruição; se considerarmos que o amante visa o empobrecimento e privação de todos os demais competidores e quer tornar-se o dragão de seu tesouro, sendo o mais implcacável e egoísta dos 'conquistadores' e exploradores; se considerarmos, por fim, que para o amante todo o resto do mundo parece indiferente, pálido, sem valor; e que ele se acha disposto a fazer qualquer sacrifício, a transtornar qualquer ordem, a relegar qualquer interesse: então nos admiraremos de que esta selvagem cobiça e injustiça do amor sexual tenha sido glorificada e divinizada a tal ponto, em todas as épocas, que desse amor foi extraída a noção de amor como o oposto do egoísmo.

Nisso, evidentemente, o uso lingüístico foi determinado pelos que não possuíam e desejavam - os quais sempre foram em maior número, provavelmente. Aqueles que nesse campo tiveram posses e satisfação bastante deixaram escapar, aqui e ali, uma palavra sobre o 'demônio furioso', como fez o mais adorável e benquisto dos atenienses, Sófocles: mas Eros sempre riu desses blasfemos - eram, invariavelmente, os seus grandes favoritos.

- Bem que existe no mundo, aqui e ali, uma espécie de continuação do amor, na qual a cobiçosa ânsia que duas pessoas têm uma pela outra deu lugar a um novo desejo e cobiça, a uma elevada sede conjunta de um ideal acima delas: Mas quem conhece tal amor? Quem o experimentou? Seu verdadeiro nome é amizade."

Friedrich Nietzsche. Gaia Ciência, § 14.